17. As heresias

O apóstolo Paulo já tinha preocupações com a integridade da fé das comunidades cristãs. Deixou advertências contra o risco das práticas judaizantes, gnósticas e contra alguns que negavam a ressurreição dos mortos.

O Apocalipse de João denuncia duas seitas gnósticas: a dos discípulos de Balaão e a dos nicolaítas. Estes últimos amaldiçoavam o Deus do Antigo Testamento e levavam uma vida libertina.

O que é gnose? A gnose é uma espécie de conhecimento superior, adquirido de modo direto, intuitivo, das respostas de todos os problemas que angustiam a alma humana. Todos os grupelhos gnósticos tinham alguns princípios em comum: a maldade da matéria e da carne, a infelicidade do homem, prisioneiro do seu próprio corpo, a existência de uma alma inferior e manchada pelo pecado, e de uma alma superior, celestial, em suma: um dualismo da pior espécie.

Os gnosticismo cristão (sim, porque havia também um gnosticismo judeu - Simão o Mago à frente - e pagão) possuía uma doutrina bastante complexa. Acreditava na existência de eões que emanavam de Deus e que faziam o papel de mediadores entre o mundo e o Criador. Estes eões eram organizados em classes, variando dos menos puros aos mais puros. Todas as classes de eões constituíam o pleroma.

No meio da seqüência de eões, um deles tentou se igualar a Deus e caiu em desgraça. Colocado para fora do mundo espiritual, teve de viver com seus descendentes em um universo intermediário. Revoltado, criou o mundo físico, essencialmente mal e contaminado pelo pecado. O éon prevaricador era conhecido como Demiurgo e identificado com o Deus do Antigo Testamento.

O homem, emanação do éon decaído, contém em si uma centelha da divindade que aspira ser libertada da materialidade. Mal é estar vivo. Os que querem viver estão condenados. São chamados de "hílicos" ou "materiais". Os que buscam a gnose, os "psíquicos", têm a possibilidade de alcançar a paz interior. Finalmente, os que renunciam à vida, os "espirituais", são os únicos capazes de obter a salvação.

Jesus era um éon escondido em um invólucro de carne humana. A razão de sua vinda era ensinar aos homens o verdadeiro conhecimento capaz de libertar, a gnose.

Existiu um gnosticismo sírio-cristão, encabeçado por Saturnilo, e depois por Cérdon. Também houve o gnosticismo de Basílides, hostil ao deus dos judeus. Principalmente, em Alexandria e em seguida em Roma, existiu o gnosticismo de Valentino, que tentava harmonizar o Evangelho com especulações estranhas. Havia ainda os cainitas, que louvavam Caim, os ofitas, que adoravam a serpente do Gênesis, e os seguidores de Judas Iscariotes, que inventaram um novo evangelho. O número de seitas era enorme.

Temos Marcião, gnóstico "híbrido". Entrou em conflito com as autoridades da Igreja de Roma. Saiu e foi excomungado em 144. Tornou-se o fundador de uma contra-igreja, na qual era dogma de fé a existência de dois deuses, um bom e um mal. O primeiro, o Demiurgo, era o Deus do Antigo Testamento: justiceiro, vingativo, impiedoso. O segundo, o Deus verdadeiro, era o Deus pregado por Jesus Cristo: amor, perdão, bondade.

Doutrinas tão "amalucadas", às vezes ridículas e às vezes terríveis, atraíam muitas almas inquietas.

Marcião organizou sua igreja e estabeleceu seu próprio cânone de livros inspirados, rejeitando tudo o que poderia contradizê-lo nas Escrituras. Os marcionitas cresceram tanto que pareciam ter invadido todo o mundo cristão. Mesmo com sua morte, em 160, suas comunidades continuaram a existir. Seus sucessores serão irrelevantes, excetuando Apeles, que diminuirá um pouco o rigor das teses do fundador. Parte dos marcionitas passará para o maniqueísmo no século III.

Há ainda o montanismo. No final do século II, Montano, da Frígia, acreditava ser o único depositário do dom da profecia. Ajudado por duas visionárias, Maximila e Priscila, que tinham deixado os maridos para o seguirem, começou um movimento de evangelização frenético pelas províncias do Oriente Próximo. O fim do mundo estava próximo, o Espírito Santo iria aparecer gloriosamente! Montano era o arauto da Era do Espírito.

Tal loucura se espalhou rápido pelo Oriente, tradicionalmente místico. A austeridade moral exigida por Montano não espantava em um lugar que já tinha visto gauleses se castrarem na iniciação dos mistérios frígios. O martírio era obrigatório no montanismo.

A partir de 170, mais ou menos, este movimento explosivo se espalhou vigorosamente pela Ásia e depois pelo Ocidente. Comunidades montanistas floresciam em muitos lugares.

A controvérsia quartodecimana, sobre a data da celebração da Páscoa, gerou vários atritos dentro da Igreja. O papa Vítor (aprox. 189-198) anunciou a ruptura da Igreja romana com as comunidades que celebravam a Páscoa no dia 14 de Nisã. Muitos bispos não aceitaram o procedimento de Vítor, e até Santo Ireneu pediu mais tolerância ao papa. Com o tempo, porém, a posição de Roma prevaleceu. (para historiadores protestantes racionalistas como Neander, Langen e Harnack, a atitude de Vítor na questão quartodecimana indica que o bispo de Roma já possuía, no século II, jurisdição sobre todas as igrejas).

O monarquianismo, inventado por Teódoto, ensinava um só Deus e uma só pessoa divina. Noeto, da cidade de Esmirna, ensinava que o Pai padeceu na cruz (patripassianismo).

Por fim, o milenarismo, que acreditava em um reinado de mil anos dos fiéis com Cristo sobre a terra, no qual se usufruiriam de todas as delícias imagináveis. Pápias era um pouco milenarista. Como veremos a seguir, levou algum tempo para esta doutrina ser condenada.



“Quanto maiores forem os dons, maior deve ser sua humildade, lembrando de que tudo lhe foi dado como empréstimo.” São Padre Pio de Pietrelcina